quarta-feira, 29 de maio de 2013

Morrer, mas não muito

Eu sou um anormal que não é afetado pela morte como a maioria das pessoas. Acredito na morte como parte natural da vida (pelo menos dos seres sexuados... a morte em organismos que se reproduzem por divisão celular ou cissiparidade, onde não há propriamente "envelhecimento", é um negócio estranho e alarmante :^P). E que a matéria, ao deixar de ser viva, retorna ao universo de onde veio... e se há um espírito (cuja existência ou não também não me afeta), feito de energia, terá o mesmo destino. É um destino glorioso para seres que são só "pó e sombra", como diziam os romanos, retornar ao universo, se diluir, integrar tudo. Não há porque ter medo. Não há porque lamentar.

Mas tem algo que a internet está fazendo que pode estar transformando a maneira como eu e todo mundo vemos a morte. Hoje qualquer um pode deixar a sua existência por escrito em redes sociais. E morrer logo depois, de câncer, de ataque cardíaco, suicídio, acidente de carro, que seja. Claro, isso sempre aconteceu. Ulisses D'Azevedo dos Andradas, um sujeito que eu acabei de inventar, escreveu uma carta ao seu irmão sobre seus planos de negócio, saiu na rua, e foi esfaqueado em 1889.

A diferença está na mídia. O papel envelhece. Uma carta ou um livro precisam ser resgatados de uma pilha ou uma prateleira, de uma caixa, porque surgiram tantas coisas depois deles... o papel sempre permanece no passado. A morte de alguém que registrou a sua vida há 10, 50, 100 anos está tão distante de nós quanto o tempo que se passou. Achava-se que a revolução aconteceria com o advento da fotografia, e depois do cinema, da TV. Mas a imagem em papel ou celulóide também envelhece.

Na internet a mídia nunca envelhece. Os sites estão sempre ativos, sempre disponíveis (desconsidere os servidores que saem do ar), sempre próximos e atuais. E, nas mídias sociais, a vida é registrada no tempo presente. Sempre que se lê algo na internet, o que nós entendemos instintivamente é que o que está sendo lido foi escrito agora, a despeito da data. Já tive respostas a posts antigos, com comentários inflamados ou congratulações, como se eu tivesse acabado de escrever aquilo, e na verdade eram ideias tão antigas e argumentos que eu já havia refutado por mim mesmo e abandonado, que eu nem soube como replicar. Para o leitor na internet, o que está escrito é sempre novo, é sempre agora.

E, novamente, com o advento das redes sociais, a massificação da internet e a transformação da rede numa espécie de quadro de recados onde cada conhecido deixa o seu (mas não necessariamente para você), a probabilidade de acontecer o improvável aumenta mais e mais. Quando ocorre a morte de um internauta, acontece algo extraordinário com a nossa mente: é como se o morto falasse, estivesse reclamando do Bolsa Família ou postando uma foto do seu último almoço. Tem a data da postagem ali no canto, mas o conteúdo está no presente, a mídia está no presente, e o leitor está no presente. Por isso, a morte de alguém online é algo muito, muito esquisito, porque ela continua existindo sem existir. O morto não fica mais para trás, ele é carregado pela dinâmica da vida pelos tempos afora.

Vou deixar a ideia pela metade por falta de tempo. Mas pense como o culto aos mortos mudaria substancialmente se os mortos não morressem totalmente.
 
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