segunda-feira, 1 de julho de 2013

Quando o Estado se volta contra você

Quando a polícia desceu o pau na Avenida Paulista no dia 17, rebocando junto membros da grande imprensa que estavam cobrindo a notícia in loco, as manifestações ganharam a mídia e se multiplicaram pelo Brasil. De lá pra cá, duas semanas apenas, governos federais, estaduais e municipais se mexeram, executivo, legislativo e judiciário agilizaram projetos e processos, tudo para acalmar o furor nacional. Mas a revolta não terminou, porque quase nada do muito que precisa ser feito ainda está longe de ser feito. O que mudou é a maneira como ele está sendo administrado pelo poder público e divulgado pela mídia. As pessoas continuam saindo de suas casas e seus locais de trabalho para reivindicar serviços públicos compatíveis com a carga de impostos que eles pagam, pelas liberdades individuais, pela manutenção de uma estrutura minimamente democrática onde a repressão não exista, onde a justiça haja, onde as leis beneficiem o cidadão e não o cultive como uma casta inferior à dos "dotô". O povo continua gritando, mas menos pessoas estão ouvindo...

Pois bem, de amigos que estiveram lá ontem, dia 30/06 e outros relatos de testemunhas que participaram da passeata de ontem a noite perto do Maracanã - e até daquelas que tiveram a infelicidade de apenas estarem lá, morarem lá - tenho lido relatos que deixariam arrepiados os veteranos dos movimentos estudantis urbanos contra a repressão militar no regime que, nominalmente, já se foi. São os mesmos gritos de antes, aos milhares, vindos da direita e da esquerda, por justiça, por liberdade, por transparência, contra a concessão de obras públicas a administradores particulares - na prática, sua privatização. E são as mesmas táticas de guerra usadas pelo poder público para calá-los: quando as pessoas mostram que não tem medo e não vão sair dali, as balas de borracha são disparadas à altura do rosto, bombas de gás e efeito moral são disparadas (por canhões, morteiros, e helicóptero), espalhando a multidão para as ruas do entorno - onde mais policiais estão aguardando para disparar sobre os que estão tentando escapar. E, enquanto avançam para manobrar o povo em fuga para seus abatedouros, eles atiram em tudo e em todos que possam produzir provas do que eles estão fazendo - atiram com balas de chumbo em transformadores para impedir filmagens, enquanto câmeras da prefeitura são convenientemente desligadas ou desviadas para não registrarem as ações. Advogados da comissão de Direitos Humanos da OAB foram acossados mesmo depois de se apresentarem como tais, demonstrando não só o desprezo do Estado representado pela corporação pelo cidadão como pelas organizações civis. É a polícia servindo como a Guarda Pretoriana de um mini ditador que a usa como escudo contra o povo que está farto dos seus desmandos.

Hoje passei boa parte do dia repassando esses relatos que vinham chegando para a minha lista de amigos, porque elas nunca saberão de nada disso pela grande mídia. A Globo, no Jornal Hoje, fez com que a primeira passeata do dia parecesse um passeio de pais e filhos, e a segunda, um arrastão de "vândalos" e "baderneiros" (vocábulos nunca usados com tanta ênfase, e mesmo assim seletivamente, porque no Egito, por exemplo, são "manifestantes" que atacam prédios públicos e sedes de partidos políticos). Mostraram o "front" dos manifestantes, com mascarados prontos para o combate inevitável fazendo um cordão humano entre os demais protestantes e a polícia, prontos para levar o primeiro impacto quando fosse dada a ordem de abrir fogo. Em seguida mostrou-se um corre-corre, e uma preocupação com o policial que teve parte da farda queimada por uma bomba incendiária jogada contra a PM depois que ela abriu fogo. A TV mostrou exatamente este momento em que a polícia iniciou o confronto armado, mas mesmo assim o texto lido pelo âncora tentava me convencer do contrário (até por isso corri de volta para o facebook recolher os relatos de quem estava lá). Os feridos, os que tiveram bombas caindo em suas varandas, dentro de seus apartamentos, os que foram ameaçados com armas de fogo, foram violentados com gás de pimenta depois de rendidos, os espancamentos, as casas que foram invadidas sem mandato para caçar os fugitivos, nada disso foi noticiado, e nem será. Porque interessa à mídia acalmar o povo, porque ela própria é um dos alvos da sua fúria, assim como os políticos que garantem as suas concessões nacionais e regionais.

Outro dia eu escrevi, me referindo na ocasião à igualdade racial (era uma data significativa para a luta pela igualdade racial nos EUA), que é preciso combater essa monstruosidade, mesmo que isso nos torne foras da lei. É preciso também que lutemos pela nossa liberdade, pelo direito de nos colocarmos contra a classe dominante, que, desde há muito tempo não se via assim de uma forma tão literal. Acabamos de passar por uma chacina no Complexo da Maré, que teve como desculpa um arrastão na Av. Brasil e um policial morto. Disso resultou uma operação do BOPE com 10 mortes, 3 delas, praticamente 1/3, de vítimas inocentes. Na favela não tem bala de borracha. A cobertura disto também tem sido pobre, porque pobres eram os que morreram; para a mídia isto faz diferença. Mas estamos vendo que, para o Estado, somos todos pobres, somos todos empregados, somos todos subclasse, a menos que nos calemos e nos conformemos, fingimos que nada está acontecendo, porque senão os próximos seremos nós, seremos pegos pela única força do poder público que deveria proteger os nossos direitos fundamentais, que é a polícia. É a tática da intimidação que tem calado as favelas há décadas, fazendo-as parecer para o "asfalto" como comunidades satisfeitas com as suas valas negras, ruas sem luz, sem água, sem serviços públicos, sem cultura, sem direitos, sem rua, sem nada. E é a tática que eles querem empregar agora contra os que se levantam. Querem nos calar pelo medo. Como eu já disse, é preciso combater esta monstruosidade, mesmo que isto nos torne foras da lei. Porque, se você não se revolta, você se torna um deles.

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