sexta-feira, 10 de abril de 2015

A lenda do Preste João

O tempo inteiro o ser humano é desafiado a tomar decisões. A grande bifurcação na vida de toda pessoa é o momento em que ela deve decidir entre perseguir um sonho ou usar o que tem nas mãos para fazer o melhor que pode. A utopia e o pragmatismo. 

No segundo caso, é possível prosperar com alguma sorte (a sorte de você ter em mãos ou ao alcance delas recursos para alavancar os seus planos, por exemplo), elevando a sua posição ao máximo que o pavimento onde ela se alicerça pode lhe dar. Mas não vai sair muito disso.
No primeiro, a única certeza é o caminho. A utopia, por definição, é o ideal inatingível. Esperar pela utopia é, portanto, ter certeza de uma decepção. Mas a busca pela utopia nos leva a caminhos impensáveis, que, assim desbravados, abrem novas possibilidades para todos.

A linha do tempo da humanidade foi desenhada por essas escolhas.

Feito esse preâmbulo, deixe-me apresentar a lenda do Preste João:

Em meados do século XII, começaram a circular pela Europa informações de uma carta endereçada ao imperador bizantino Manuel Comnenus assinada por um certo Preste João. A carta era uma espécie de pedido de socorro e ao mesmo tempo uma oferta de ajuda. Preste João se dizia descendente de um dos Reis Magos, e ele mesmo era rei de um país cristão localizado na Ásia, e estava lutando em desvantagem contra exércitos de infiéis (muçulmanos e pagãos) dos reinos que o cercavam. A carta também descrevia o reino de Preste João repleto de riquezas, como pérolas, pedras preciosas, uma fonte da juventude, e criaturas fantásticas como aves gigantes e homens chifrudos com três olhos atrás da cabeça.

A carta obviamente era uma farsa. Mas para a Europa do século XII, em que previsões do Fim dos Tempos iam e vinham como a chuva, e cujo conhecimento do mundo além da Pérsia e do norte da África era baseado em rumores e lendas, coisas como homens-porcos eram perfeitamente possíveis, ou informações que um governante educado poderia ignorar como recurso estilístico para ressaltar a exoticidade de alguém que prometia ser dono de riquezas inimagináveis, ou um exército contra um inimigo comum e imediato e que poderia destruir tudo a qualquer momento. E era isso que importava. O autor da carta dava credibilidade ao seu relato citando a Igreja Nestoriana, a denominação cristã dominante da Ásia e que a Europa mantinha contato através da Pérsia, e lá residia o Patriarca da Igreja de São Tomé, que sabidamente existia na Índia desde o século I - fosse Preste João católico e estivesse jurando obediência ao Papa, por exemplo, a farsa seria mais evidente. A carta estar endereçada ao imperador bizantino, de cuja Igreja havia se originado o nestorianismo séculos antes, também foi sagaz.

Eventualmente a carta chegou ao Papa Alexandre III, que, em 1177 enviou uma comitiva para o oriente para encontrar Preste João e entregar-lhe uma resposta. Ele esperava sinceramente que Preste João se tornasse um aliado na luta perpétua de cristãos e muçulmanos no Oriente Próximo. Os mensageiros nunca retornaram. Apesar disso, aventureiros europeus continuaram forçando o caminho para o leste em busca do reino de Preste João e suas riquezas, tateando por rumores e suposições, geralmente esbarrando em muçulmanos ou assaltantes, ou apenas voltando de mãos vazias.

Cerca de 40 anos depois da comissão de Alexandre III, o Bispo de Acre trouxe boas notícias da Quinta Cruzada, rumores de um poderoso rei que marchava no leste contra os infiéis na Pérsia. Uma onda de otimismo invadiu a Europa, e muitos acreditavam que Preste João, ou provavelmente um de seus descendentes chamado Davi, estava vindo para ajudá-los.

Infelizmente, não era o Preste João. Era ninguém menos que Genghis motherfucking Khan.

Genghis havia conquistado a Pérsia e destruído Bagdá, pelo que os cristãos europeus ficaram eufóricos. Eles, que estavam bem preparados para ataques árabes na Palestina e na Anatólia, mas não para as hordas mongóis vindas da Rússia, só perceberam realmente o que estava acontecendo quando, de assalto, os mongóis, sob o filho de Genghis, Ogedei, devastaram a Polônia e a Hungria, e só pararam por aí porque o mesmo Ogedei morrera e seus generais tiveram que voltar à capital Karakorum para eleger o novo Khan.

Apesar disso, a lenda de Preste João persistiu por muito tempo, apoiada em relatos de exploradores confiáveis. Marco Polo descrevia Genghis Khan como um vassalo de Preste João que teve a audácia de pedir uma filha sua em casamento, e a recusa ocasionou uma guerra na qual João perecera (Temudjin realmente tomou uma cristã nestoriana como esposa para um dos seus filhos, fato que levou a uma guerra contra o pai da moça, o khan karaíta e nestoriano Toghrul). A maioria dos relatos pós-mongóis posicionavam Preste João como um dos reis derrotados por Genghis Khan, mas sugeriam que seu reino ainda existisse em algum lugar na China ou na Índia, ou mesmo na África, onde os reis etíopes preservavam o cristianismo apesar de um relativo isolamento com as nações européias devido à expansão islâmica (o missionário Jordanus, em 1329, diz que o rei da Etiópia do seu tempo era o tal Preste João, e em 1441 os embaixdores do imperador Zara Yacob no Concílio de Florença ficaram confusos quando os clérigos europeus insistiam em se referir ao seu senhor como Preste João. É provável que os imperadores etíopes sequer tenham ouvido falar do Preste João até meados do século XVIII).

Viajantes europeus, e mesmo governos nacionais (mais de uma expedição marítima portuguesa para o leste teve a incumbência de localizar o Preste João) procuraram o reino por 500 anos. Por mais legendário que fosse, foi uma das forças motivadoras para os europeus para a exploração do mundo fora da Europa, e abriu caminho para o intercâmbio cultural, científico e tecnológico entre regiões anteriormente tão isoladas por barreiras culturais e políticas.

P.S.: Não faço a menor ideia de como a configuração do texto deste post ficou assim.
 
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