quarta-feira, 30 de abril de 2014

Perdão

Hoje de manhã, no seu perfil do Facebook, o Dalai Lama (ou quem administra isso pra ele) postou um link para o Tutu World Forgiveness Challenge, iniciativa do arcebispo Desmond Tutu onde ele propõe um mês de exercício do perdão como forma de crescimento e cura pessoal e social. Eu poderia ter ignorado, ou resmungado sobre como isso é hipócrita (e poderia ainda apontar o dedo para o livro que ele está vendendo no site), improdutivo ou inútil, ou como isso não me diz respeito.

Mas só a menção dessa iniciativa de espalhar o perdão como forma de tornar nossas vidas melhores me fez retornar a 9 anos atrás, quando experiências e reflexões sobre o sentido do perdão me fizeram publicar um texto sobre isso no meu antigo blog, precisamente no dia 22 de agosto de 2005. O blog, como todo o provedor, foi desativado em 2007, mas por muita sorte eu cheguei a copiar e enviar esse texto para uma antiga colega de trabalho naquele mesmo ano, e esse e-mail continua armazenado na minha pasta de enviados do gmail. Transcrevo-o aqui:

"Perdoar não é passar uma borracha sobre os erros do outro, sorrir e dizer que está tudo bem. Não é fingir que nada aconteceu e retomar a vida como era antes. Não é voltar para quem vacilou contigo como se nada tivesse acontecido.

O perdão é antes de tudo uma coisa que deve ser feita pra vc mesmo. Pq quando não há perdão, há mágoa, há azedume, há feridas abertas no coração que não se fecharão. Quando não há perdão, a raiva pelo erro do parceiro toma conta da sua vida, e vc precisa se esforçar horrores pra superar isso, e quase nunca consegue por completo. Perdoar é cicatrizar estas feridas. É dizer 'ok, mas não posso continuar assim, vamos ser felizes sem nos machucar, cada um ao seu modo, cada um na sua estrada'. Perdoar é trazer paz ao seu coração e permitir que ele esteja pronto para os próximos desafios sem que as mágoas do passado o tornem pesado e quebradiço.

Perdoar não é apagar os erros do passado para começar tudo de novo. É fechar as cicatrizes do seu coração e abrir caminho para vc continuar a sua própria vida em paz. É um ato de amor, pois vc tira o peso que o arrependimento traz sobre quem errou, pessoa esta que um dia lhe fez feliz... e é um ato de amor próprio, pq tb alivia o peso de uma grande decepção que não precisa estar sobre vc a menos que vc queira."

Ainda em 2005, uma mulher desconhecida me mandou um e-mail perguntando se ela poderia repostar este texto específico. Essa mulher se tornaria a minha esposa :^)

quarta-feira, 9 de abril de 2014

Vindo para a "Cidade Grande" (sem sair da cidade)

A vida na civilização...

Eu nasci em Ipanema, na rabeira da rua Alberto de Campos, entrada do Morro do Cantagalo, e morei lá até os 5 anos e meio. Como eu só podia andar sozinho até a banca de jornal da esquina (meu primeiro "emprego"!), esse período não conta.

De lá, fomos para a Barra da Tijuca, num tempo em que se olhava ao longe e só se via dunas de areia branca, e o mar ao longe. Era, na época, a parte mais afastada da Barra; os shoppings, restaurantes, postos de gasolina, supermercados e centros comerciais que começavam a pipocar, estavam todos distantes demais para se ir a pé (o que, aliás, é o meio de transporte menos prático para a Barra, quem já se viu tendo que andar para ir de um lugar a outro por lá sabe bem disso). A padaria mais próxima (onde tb funcionava a locadora de filmes e games mais próxima) ficava a 15 minutos de casa. Em suma, só quando tinha um carro e alguém disposto a dirigí-lo era possível fazer as coisas do dia a dia - e já que estávamos de carro, não necessariamente essas tarefas eram realizadas na Barra.

Há 9 anos mudamos para a Ilha de Guaratiba, bairro relativamente isolado e desconhecido do resto da cidade, na zona rural do município. Sim, zona rural, na verdade, repartido entre o Parque Estadual da Pedra Branca e a Reserva Ambiental Rural de Guaratiba, com fazendas de gado, plantações de frutas, legumes, e plantas ornamentais, haras, sítios para festas, etc. Deve ser a utopia de qualquer neoliberal, porque ali o Estado é algo quase totalmente ausente - a urbanização se restringe a uma linha de postes de luz ao longo de uma estrada pavimentada há décadas, e os pontos de ônibus que continuam de pé foram erguidos no governo Chagas Freitas, quando governador do Estado da Guanabara! No início eu morava com meus pais numa casa grande e confortável, mas na área mais carente do bairro, onde vc olha para um lado da estrada, olha para o outro, e não vê sinal de atividade humana. Depois eu me mudei para outra casa menor, mais perto do "centro" do bairro, onde o "hot spot" era um mercado que vendia coisas de marcas bizarras que pareciam terem sido jogadas fora por outro mercado e vendidas a preço de Pão de Açúcar, basicamente pq era o único mercado dali. Quando me mudei, a Ilha contava com duas linhas de ônibus, mas a principal delas, que ligava o bairro à Barra - e permitia, com uma baldeação, chegar à Zona Sul e ao Centro, onde estão os empregos na cidade - deixou de circular quando foi inaugurado o BRT Transoeste. Hoje, o morador da Ilha que não tiver a sorte de morar perto de uma estação e/ou não puder se deslocar a pé, é obrigado a pegar o último ônibus que ainda resta só para sair do bairro e se virar para chegar a qualquer outro lugar. O meu itinerário de casa para o trabalho exigia 3 ônibus. Sendo o bairro carente de serviços - comprar um jornal exigia quase 40 minutos de caminhada - era muito difícil fazer qualquer coisa perto de casa, e muito difícil, por conta do transporte e do cansaço acumulado durante a semana pelas enormes distâncias percorridas, fazer qualquer coisa longe dela. Uma vida bastante reclusa. Sobreviver num lugar como a Ilha, onde não há emprego, serviços, onde até quem trabalha especificamente com entregas em domicílio não sabe se localizar, e onde qualquer coisa precisa ser feita a pelo menos dois ônibus de distância exige altos malabarismos e adaptações específicas, que, quando dominadas, induzem as pessoas da região a quererem permanecer ali e manter aquele estilo de vida precário, mas com o qual elas sabem lidar.

Enfim, findo o contrato de aluguel na Ilha, encontrei um apartamento no bairro de Lins de Vasconcelos, no Grande Méier, Zona Norte da cidade. É possível que quem não seja do Rio tenha ouvido esse nome, ou sobre as favelas do entorno, que a secretaria de segurança convencionou de chamar de "Complexo do Lins" em sua até agora fracassada tentativa de "pacificar" as comunidades. Eu não vou me deter muito a descrever o bairro nem o estilo de vida, mas para se ter uma ideia do quão roceiro eu me tornei morando em Guaratiba, vejam só as diferenças que eu tenho notado no estilo de vida e tem me deixado maravilhado (a despeito de problemas estruturais no meu prédio, que têm me aborrecido). Talvez algumas dessas coisas pareçam naturais a outras pessoas habituadas à vida urbana, mas talvez reparar nelas os faça valorizá-las um pouco mais:

- É possível ir a qualquer lugar da cidade (inclusive para a Ilha de Guaratiba) usando transporte público em menos de duas horas;
- Mesmo em se tratando de um bairro essencialmente residencial, apenas com pequenos comércios, é possível ir de lá até o grande centro comercial da região (a rua Dias da Cruz, no Méier) em 10 minutos a pé;
- É possível fazer compras num mercado limpo que não lhe venda legumes podres por preços malucos;
- É possível escolher esse mercado;
- É possível escolher entre ir a esses mercados ou a quaisquer lojas que vc queira que vendam os mesmos produtos - Casa & Video, Americanas, Casa do Biscoito, Mega Lar, etc.;
- É possível ir a um médico ou a um laboratório fazer exames sem precisar pegar duas conduções. Ou qualquer uma;
- A pé ainda é possível ir a uma loja da Light e outra da CEG;
- Existe gás encanado;
- Existe água encanada;
- A luz não acaba toda semana, nem nos dias mais quentes, nem nos mais chuvosos;
- As empresas que fazem entregas sabem localizar o meu endereço;
- Os taxistas sabem localizar o meu endereço;
- O carteiro sabe localizar o meu endereço;
- As pessoas que moram na minha rua sabem localizar o meu endereço;
- A viagem para o trabalho exige apenas dois ônibus, e dura cerca de 1:30, cerca de metade do que eu gastava antes em cada viagem...;
- ... e existe mais de uma rota possível e viável de casa para o trabalho;
- Tem mais de uma linha de ônibus passando pelo bairro, e eles passam em intervalos de, no máximo, 10 minutos um do outro;
- Existem lanchonetes pequenas, lanchonetes de grandes franquias, e restaurantes, e esses restaurantes não colocam preços para turistas estrangeiros no cardápio;
- Vc pode pedir pizza por telefone, e essa pizza chega em meia hora no máximo;
- Na esquina tem um hortifruti, uma padaria, uma farmácia, e uma viatura da PM;
- Todas as ruas são asfaltadas e possuem calçadas;
- Existem faculdades, cursos, e locais com atividades culturais, até de graça;
- Repito, calçadas!

Minha única reclamação é que as pessoas não dizem bom dia, obrigado, desculpe, boa noite e por favor. Exceto as meninas que trabalham na Rainha do Méier (uma padaria) e as duas bichinhas crackudas que passam as noites num beco perto de casa.
 
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