segunda-feira, 2 de janeiro de 2017

A morte na era da pós-verdade (contém spoilers de filmes no fim)

Porque 2016 foi um ano tão infeliz para a humanidade e 2017 até agora não dá sinais de que será muito diferente (bastaram alguns minutos da virada do ano novo para um cidadão de bem assassinar ex-mulher, filho, e mais uma dezena de pessoas em Campinas, e outro metralhar uma centena numa boate em Istambul... sem falar em alguns prefeitos do apocalipse começando os trabalhos no dia de hoje), vou arriscar falar sobre a morte, especificamente um aspecto bastante confuso e sombrio dela, sobre como a nossa relação com a morte está mudando radicalmente.

Para começar, eu me assumo taoísta, o que significa que a morte, para mim, é como se fosse a dispersão de toda a matéria e energia em direção à sua origem, que é o próprio Universo. O que, em termos práticos, não é muito diferente do aspecto biológico do fim da vida de qualquer organismo: ele é reabsorvido e transformado pela biota e elementos naturais, e tudo que o compunha é reintegrado à terra, ao ar e aos que se alimentam disso. Ou seja, a morte é não apenas a cessação de funções vitais, mas seria também a cessação da individualidade - se tudo que compõe o organismo, e consequentemente o indivíduo, começa a se dispersar no momento da morte, também essa individualidade desaparece. Imagine que você morre na selva e seu corpo repousa sobre o folhiço úmido. O que resta de você - seu corpo, embora já entrando internamente em colapso - está ali, mas não demorará muito para que fungos, insetos e bactérias transformem você no mais novo restaurante fast food da floresta, e cada pedacinho do que você já prezou como seu estará no estômago ou vacúolo de milhões de outros seres, serão processados e entrarão na construção dos seus próprios corpos. No clima úmido, até seus ossos - o esqueleto que instintivamente reconhecemos como tudo que resta da existência humana após a morte - serão desfeitos. O que existia da sua individualidade física não existe mais. Aí entram elementos de fé - a de que há um espírito ou alma, "anima" em latim, que, dependendo da crença, serve para fazer a matéria funcionar de maneira coerente, ou até pode ser a matriz imortal de toda a existência, sendo o corpo apenas um traje temporário. A diferença no taoísmo é que a alma, se existe, também se dissolve e "retorna ao Tao" para ressurgir como outras coisas, integrando novas individualidades. Se alma não é matéria, admitindo então que ela seja energia, ela deve se dispersar, como objetivamente dispersa-se a energia contida nas ligações químicas que são quebradas nos processos de decomposição. A alma, assim, pode até ser eterna (se você considerar que, ao "regressar ao Tao" e ser reabsorvida pelo universo, ela não desaparece, mas se torna uma mínima parte de tudo), mas não tem carteira de identidade.

Dito isso, eu ressalto que a minha relação com a morte é de quase indiferença. Sinto compaixão e respeito, até reverência se acho adequado, mas não sofro pelos que se vão, independente do vínculo - o que me causa problemas quando preciso lidar com alguém que está sentindo esta dor. Porém, entendendo outras maneiras de se encarar a mortalidade (que tem a ver com a noção de imortalidade da individualidade na forma de uma "alma" identificável que permanece em algum lugar após a morte), conheço e entendo como as pessoas lidam com isso. O luto, a necessidade de se preencher (ou preservar) vazios emocionais, a idealização do falecido, a angústia tornada esperança de encontrar na fé uma maneira de se religar aos que se perderam. Mas seja como for, a morte é encarada na maioria das sociedades, mesmo nas que creem na reencarnação (os hindus e os budistas, apesar de acreditarem, a seu modo, na permanência do espírito, também pranteiam seus mortos em funerais), como o fim da existência física.

Indo finalmente ao ponto. A internet evoluiu para ser uma imensa central planetária de relacionamentos, onde todos estão potencialmente em contato com todos, e esse contato é estabelecido com a troca de mensagens, fotos, vídeos, anúncios comerciais, produções artísticas, etc. Dependendo das regras de hospedagem, tudo que é postado fica acessível para a posteridade. Mesmo intensamente dinâmica, a internet, assim, é um depositário de documentos do passado. Em 2013 estimava-se que apenas Google, Microsoft, Amazon e Facebook somavam 1,2 bilhões de gigabytes de dados armazenados. A World Wide Web hoje possui cerca de 10^24 bytes de capacidade total de armazenamento, ou seja, muito mais cabe aí dentro. Duas características curiosas marcam a relação das pessoas com a internet, derivando daí uma terceira. A primeira: muito do que se escreve é redigido no tempo presente, sejam notícias, artigos, tweets, e-mails pessoais ou corporativos, o que faz sentido no momento em que são escritos. Mas são armazenados na "memória" da internet no tempo presente, de maneira que um post de um blog sobre uma crise existencial de um internauta qualquer nos idos de 2004 pode alarmar um leitor compassivo de 2017, se ele não atentar para a data da postagem. E era uma trollagem comum nos tempos de orkut "upar" tópicos muito antigos para instigar discussões acaloradas entre os mais distraídos, quando a discussão já havia encontrado um termo, o criador do tópico já nem lembrava do que havia escrito, ou nem sequer estava mais ativo na rede. Sites como o E-Farsas existem porque pessoas desavisadas compartilham histórias (muitas vezes falsas ou descontextualizadas), não datadas, pensando estar compartilhando grandes novidades. Por estar massivamente registrada em tempo presente, o que existe na internet soa permanentemente atual.

A segunda característica é o formato digital dos documentos. Livros e cartas também são escritos no tempo presente, ou pretendem falar do tempo e do espaço em que seus autores estavam inseridos, mesmo no campo da ficção. Mas o papel envelhece. O texto digital não. É possível examinar uma carta e determinar, pela caligrafia, pelo material, pela tinta, a época em que foi escrito - as fichas catalográficas dos livros tem as datas da primeira publicação e da edição presente - e essa datação nos ajuda a colocar mentalmente o documento no tempo pretérito. Um documento digital da WWW de 1995 é, em aparência, similar a um de 2016, e, se ele não estiver devidamente datado, seria preciso mais do que a habilidade de upar fotos de gatos para saber a data de criação daquele arquivo específico. Antes de postar qualquer coisa mais elaborada, eu escrevo meus textos no bloco de notas do Windows, que conserva um ar de anos 90, o que torna páginas antigas aceitavelmente familiares para mim. Então tudo tem cara de novo, ou, no máximo, "vintage".

Então a internet está repleta de documentos "atuais". Só que esse conteúdo todo é produzido por pessoas, e as pessoas morrem. A internet como conhecemos existe no Brasil há quase 22 anos, é um tempo que excede a maioridade aqui no país. Muita gente morreu nesse período. Muita gente nasceu E morreu. Se um internauta produziu alguma coisa e o servidor em que se hospedava continua online, o que ele produziu é facilmente acessível em mecanismos de busca. Se ele produziu um texto pessoal em 2002 falando sobre como o seu cachorro late muito de madrugada, e ele, o usuário, morreu em 2004, então temos um texto pessoal, em tudo atual e em tempo presente, contando-nos uma novidade na sua vida, vindo de uma pessoa morta. Eu tive um amigo que se suicidou em 2013, cujo blog no Livejournal, com suas mais recentes excursões montanhistas e entreveros familiares, continua no ar. Até recentemente a página da minha ex-namorada no Facebook ainda estava lá, 5 anos depois dela morrer de câncer. Em 2001 eu batia ferozes partidas de batalha naval online com uma senhora de 59 anos que hoje teria 74, idade na qual muitas pessoas já morreram de "velhice". A internet é povoada de gente morta que, graças ao formato e ao conteúdo, se comunica conosco em tempo presente, muitas vezes sem sabermos. A morte, o fim da existência física, está deixando de ser sentida porque a individualidade, na forma de blogs pessoais e perfis em redes sociais, está sendo preservada. Aqui foi feita uma estimativa de cerca de 10273 usuários do Facebook morrem por dia, e que desde a sua criação, os mortos já somam cerca de 30 milhões - em 2130, a quantidade de perfis "mortos" superará a de usuários vivos.

A morte física está deixando de ser motivo de luto, e está lentamente se tornando parte do espetáculo - até literalmente, com a ocorrência cada vez mais numerosa de suicídios anunciados ou transmitido em redes sociais, para entretenimento de um público assustadoramente insensível ao sofrimento alheio. A derrocada de Amy Winehouse, culminando com a sua morte, foi intensamente coberta pela imprensa e compartilhada, passo a passo, pelas pessoas na rede, constituindo assim no maior e mais longo suicídio assistido de que eu tenho conhecimento.

Uma terceira característica das interações humanas na internet é a sua superficialidade. Ninguém realmente conhece ninguém, e mesmo amigos pessoais que não se veem por muito tempo e mantém um tênue vínculo pelas redes sociais, acabam flutuando de volta até essa camada superficial, porque na maior parte do tempo essas redes suprem a necessidade de contato, interação, sensação de pertencimento e aceitação, enquanto estamos ocupados trabalhando e produzindo. As pessoas exibem e se relacional com a superfície; as fotos felizes, intencionais e com os melhores ângulos, os textos impessoais e protocolares, a colagem de opiniões alheias (e a fuga do debate). Ninguém se dá ao trabalho de elaborar um pensamento ou opinião, porque ninguém lê "textão" (ah, eu e o criador do Twitter sabemos bem disso!) A era da "pós-verdade", em que mentiras e boatos que se adequam a padrões de pensamento e ideologias específicas são mais prezados do que dados e fatos, mesmo tendo consciência da mentira. Pessoas chegam a ser tão superficiais que é difícil entender o que elas querem dizer com tantas meias palavras, são tão agressivas contra o que se opõe e não elaboram o que defendem, o que acreditam. Essa superficialidade amortece qualquer sentimento de empatia, e facilita o surgimento de comportamentos hostis que os códigos sociais da sociedade pré-internet reprimia - este fim de semana houve uma segunda onda de ofensas raciais à filha de um casal de atores, que, por Deus, tem só 2 anos de idade! E também, voltando ao assunto, banaliza a questão da morte, que pode facilmente virar motivo de piada - mesmo piadas insistentes, os memes, das quais nem a criança síria fotografada morta na praia escapou.

A morte como parte do espetáculo - e, ta-da, o que me levou a escrever sobre isso - não é matéria para um futuro distópico contra o qual devemos nos prevenir para evitar. Isso já está tão naturalizado que nem sequer é uma novidade no mundo do cinema: usar a imagem de atores falecidos em obras cinematográficas inéditas é uma prática que vem do cinema em preto em branco. Na década passada O Homem de Aço trouxe um Marlon Brando digital dos mortos para reviver o papel de Jor-El, o pai do Super-Homem, papel vivido por ele em 1979. Recentemente, em Rogue One, de 2016, a Disney, proprietária da franquia Star Wars, escalou Peter Cushing, ator britânico morto duas décadas atrás, como Grand Moff Tarkin, o sombrio oficial imperial que comanda a Estrela da Morte. Seu rosto e porte físico foram recriados em computador e dublados, e não apenas para uma participação especial, mas desempenhando um papel significativo na tela. A Disney é dona dos direitos sobre o personagem, e aparentemente sobre a sua imagem, precisando apenas da autorização da família do ator para fazê-lo, o que permitiu que ela inserisse ali também uma Carrie Fisher 40 anos mais jovem. Assisti o filme na antevéspera da morte da atriz, e soube que ela já havia gravado suas cenas para o próximo Star Wars, garantindo assim que o próximo grande lançamento da série contará com uma estrela morta num papel central de um filme inédito - e a única coisa que impede o estúdio de usá-la indefinidamente em filmes vindouros como a Princesa Léia é a assinatura num papel. Ela ter morrido se tornou irrelevante do ponto de vista prático.
 
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