Todas as atividades que me
dão prazer, as tenho realizado por motivos práticos: por inércia (trabalho,
sociais), para preencher lacunas de tempo (ler, escrever, desenhar, games, música), ou
por obrigação (comer, pedalar). Nenhuma delas pelo prazer que proporcionam.
Isso tem me esgotado sobremaneira. Isso tem convergido e se
manifestado em estafa, indiferença, e sonhos perturbadores, como esse abaixo. É preciso desacelerar:
"São 4 da manhã e eu
estou escrevendo na esperança de tirar um sonho da cabeça e voltar a dormir.
Tudo começou quando ouvi
falar que existia um filme sobre dois dançarinos que conquistavam pessoas e
despertavam paixões enquanto competiam entre si. Era um dançarino espanhol e
outro egípcio. Eram dois estereótipos cômicos dos anos 50 de amantes exóticos
que faziam as mulheres suspirar com o poder dos seus bigodes e do seu sapateado. Ambos se chamavam algo como "Pés-dançantes-e-quadris-pulsantes" nas suas respectivas línguas (a língua do
egípcio era francês), e um contra o outro era o nome do filme. Era esse o nível de absurdo.
Até aí foi divertido.
Acontece que esse filme
evocava um ser maligno, que não tinha nome, mas vou chamar de Sinistro. Ele
apareceu da seguinte maneira:
De alguma forma eu me vi
participando do filme como figurante ou expectador ao vivo. Entre uma cena e outra, eu me vi com dois espanhóis
encostados num carro, na praia do Leblon, conversando sobre diferentes formas
de se pronunciar as mesmas palavras em diferentes lugares em espanhol e
português. Vale dizer que era noite, e que o sonho inteiro se passava à noite.
Foi quando passaram por nós dois garotos correndo. Eram dois meninos negros sem
camisa, de no máximo 5 anos. Correram em direção ao rochedo no começo da praia,
onde fica a colônia de pescadores. Eles estavam machucados e assustados, e eu
vi que precisavam de ajuda. Fui até eles e detive um pelo ombro. O outro
fugiu, e ele se debatia mesmo quando eu ofereci ajuda.
Então surgiu um homem com uma
capa de chuva preta, capuz cobrindo a cabeça. Numa fala calma, mas bastante
afetada, ele dizia que agora estava tudo bem, me agradecia, e falava
amigavelmente com o menino. Eu o soltei. O homem o pegou pelo braço, o ergueu
do chão, e começou a devorar uma perna. O menino urrava de pavor.
Fiquei desorientado por uns
momentos. Quando me dei por mim, estava estabelecido que esse Sinistro seria um
assassino em série que tinha preferência por mulheres e crianças, que ele
devorava ainda vivos.
Eu estava entre fugir e acabar com ele, quando
o encontrei novamente, comendo a carne de outra criança. E eu pude ver a sua
aparência: Era um homem muito alto, mas muito curvado que o fazia mais baixo
que eu. Parecia nu sob a capa. Sua pele era branca, mas ela desaparecia nas articulações dos membros, expondo restos de carne arruinada; o rosto parecia
ser composto por retalhos, com lábios, nariz, bochechas, testa como se tivessem
sido colados separadamente um sobre o outro, e não tinha cabelo. Não lembro de
olhos. Numa atitude macabramente cortês, como antes, ele me explicou porque fazia aquilo.
Deus havia criado o homem imperfeito e fomentado o pecado plantando uma árvore
proibida no Éden, resultando inevitavelmente em sua queda. Sendo a queda programada e o pecado um aspecto do divino,
ele entendia que cometer os pecados mais abomináveis - o assassinato de
inocentes e canibalismo - eram uma forma de adoração mais elevada. Ele sinceramente acreditava estar praticando o bem maior.
Ele então mudou subitamente de atitude e
partiu furiosamente para cima de mim, querendo me matar ou me comer vivo. Eu
tentava escapar, mas o tempo todo ele quase me agarrava. Consegui pegar um
machado e golpeava a esmo tentando afastá-lo. Consegui golpeá-lo na cabeça, mas
ao ver que isso não o matava, golpeei várias vezes, destruindo seu crânio. Mas
nem isso o detinha.
Nessa hora acordei, e ainda
tomei um baita susto ao olhar as roupas pretas penduradas num gancho na parede
do meu quarto. Respirei por alguns momentos, rolei na cama com o sonho fresco
na memória e voltei a dormir. E voltei a sonhar.
Neste outro sonho, que também
se passava à noite, eu estava na rua (a mesma rua onde encontrei o Sinistro pela última vez), entre os meus colegas de trabalho, e eu
contava a eles o que tinha acabado de sonhar. Foi aí que eu concluí que o filme
dos dançarinos continha uma maldição, e que além disso, outros objetos em cena,
como umas varas de bambu que compunham uma das cenas do filme (e que estavam
ominosamente ali presentes naquela outra "realidade") também
continham uma energia negativa. Procurei jogar tudo fora.
Uma das minhas colegas, que é
espírita, começou a falar de algo que ela chamou de "seres transversos",
que eram espíritos que habitavam as casas e circulavam livremente nelas, nos
atravessando o tempo todo sem percebermos, por serem imateriais, mas que nos
influenciavam positiva ou negativamente.
Eu me vi num prédio, e
eu podia ver o interior do prédio como se olhasse um recorte vertical
esquemático dele, ao mesmo tempo em que eu me via dentro dele, cercado por paredes. E eu podia ver "seres transversos" fluindo suavemente por toda a construção, subindo e descendo em diagonais, indo de um lado para outro. Eles eram de luz. Mas entre eles
havia um único vulto furtivo que vez ou outra surgia de relance. Então, de
repente, num susto, ele apareceu claramente na minha frente. Sua forma era uma espécie de
anel grosso e negro, com um rosto angulosamente estilizado no estilo maia entalhado. Eu
entendi que ele era a razão de eu ter tido aquele sonho anteriormente. Então eu
enxergava tudo escuro em volta dele, e conforme a minha angústia aumentasse, eu
via chamas. E de repente os seres de luz sumiram, e o meu prédio era uma coluna
espiral de fogo em fúria. Era o próprio inferno, e o tal anel flutuava e girava
no meio de tudo, e eu tentava sair desesperadamente. Gritava, pedia por
socorro, mas eu estava só.
Então, por um momento, no
meio desse caos, eu não enxerguei paredes. Eu podia ver a rua. Me arrastei para
fora dali, e a visão desapareceu. Meus colegas ainda estavam ali, me olhando
com estranheza, porque só eu tinha visto aquilo. O prédio nunca havia existido.
E eu entendi que o prédio, e todos aqueles seres que o habitavam... eram
eu."