quarta-feira, 3 de dezembro de 2014

Toda pessoa importa

Fazer o bem sem olhar a quem. Gentileza gera gentileza (Amorrr). Seja a mudança que você quer ver no mundo. Ama o próximo como a ti mesmo. Todo embrião gerado há pelo menos 4 horas neste planeta já ouviu alguma dessas frases e achou bonitinha. Ou achou que é coisa de hippies, comunistas, ou hippies comunistas. Mas, dentre todos os seres humanos que estão na Terra neste minuto com mais de 4 horas de vida, quantos realmente pararam para pensar no que os profetas, ungidos, louquinhos de rua, e hippies comunistas estavam tentando dizer.

Por mais individualista que você acredite ser, sua qualidade de vida depende largamente da sua interação com as outras pessoas. Se você é uma pessoa absolutamente reclusa e solitária, que não é assistida por ninguém, que não assiste TV, não ouve rádio, não acessa internet, não pede comida por telefone - nem sai pra comprá-la no mercado, nem por qualquer outro motivo - então, em algum momento, a sua qualidade de vida vai depender, em algum grau, da sua relação com outras pessoas. Viu, até o João Gilberto está sujeito a isso.

Agora, se você é uma pessoa normal, que sai todo dia pra trabalhar ou estudar, pega trânsito, sobe num ônibus, mostra o crachá na portaria, almoça no quilo, recebe e distribui tarefas, volta pra casa e janta com familiares, e posta abobrinhas no facebook, então essa relação é mais óbvia. Pois veja: mesmo que você seja uma pessoa extremamente satisfeita consigo mesma, se você esbarrar com uma pessoa grosseira na rua, o motorista do ônibus passar do seu ponto, seu chefe te der um esculacho, a comida do restaurante estiver morna, seu(sua) companheir@ estiver de ovo virado, e seus posts no face forem criticados, seu humor não vai resistir por muito tempo. Imagine isso se repetindo todo dia. Sua boa disposição vai lentamente, entre idas e vindas, se transformando em misantropia, você vai "endurecendo", se torna cada vez mais ranzinza.

Sua crescente insatisfação poderá, possivelmente, levá-lo a apontar para os responsáveis pela sua angústia. Embora a habilidade de apontar o dedo indicador não seja presente desde o nascimento, uma vez aprendida se torna a maneira mais fácil de identificar problemas. A pessoa da rua é uma estúpida, o motorista é um incompetente, seu chefe é arrogante, o restaurante é ruim, seu(sua) companheir@ não entende você, e as pessoas no face são manipuladas. Resolvido.

Só que não.

Este é o mundo visto em primeira pessoa. Se você se encaixa nesse padrão de comportamento, então você é tão egoísta que acha que o mundo inteiro se importa tanto em azucrinar você que ele tem um plano sistemático para isso, que envolve pessoas que você nem conhece. Como essa ilusão é algo que pode ser resolvido com remédios, vamos pensar fora da caixinha. Ou, como eu gosto de dizer, vamos calçar os sapatos de outra pessoa.

Vamos pegar o motorista. Ele não é um homo ex machina cuja única função é dirigir um ônibus. Ele acorda cedo e com fome, sai para trabalhar, cumpre seu horário, volta para casa. Ele, como você, no percurso do dia, estabelece relações com outras pessoas. Será que elas o tratam com gentileza? Será que ele mora num lugar em que ele é respeitado, será que o padeiro lhe dá bom dia? Será que o patrão não está exigindo dele mais do que as suas ferramentas de trabalho lhe permitem (como é comum das empresas de ônibus cobrarem tempos de percurso dos motoristas que só são possíveis em condições perfeitas de trânsito)? Será que ele tem que aturar grosserias de passageiros e de outros motoristas? E ao voltar para casa, será que a sua família dá valor ao seu trabalho?

O padeiro que não deu bom dia ao motorista, será que ele dormiu bem? Ele mora num local seguro? Alguém pediu fiado e não pagou, ou alguém assaltou a padaria enquanto estava fechada? Seus parentes estão bem de saúde?

Eu creio que já me fiz entender e não vou seguir a vida de cada ser humano para mostrar como as interrelações determinam comportamentos e e o estado emocional das pessoas, e é essa a matriz emocional que determina o quão bem nos sentimos com as nossas próprias vidas e nos motivam a fazer determinadas escolhas. Isso vale para mim, para você, para o brucutu da rua, para o motorista do ônibus, o segurança do trabalho, o seu chefe, seus colegas, seu(sua) espos@, pais e filhos. Assim como o emocional afeta o seu rendimento no trabalho, sua disposição para lidar com as pessoas, e as escolhas que você faz com a sua vida, o mesmo ocorre rigorosamente com todas as outras pessoas.

Finalmente cheguei onde eu queria: a importância de cultivar positivamente cada relação. Mesmo a mais banal. Mesmo com quem você nem precisaria se importar. Por exemplo, e isso é assustadoramente comum onde eu passei a minha juventude, pessoas que podem se dar ao luxo de pagar a terceiros por serviços que são necessários mas elas não tem tempo nem disposição, ou simplesmente acham indigno fazê-los. Não raro, ao estabelecer uma relação de trabalho com o prestador, a pessoa cria uma barreira emocional, e o prestador vira um homo ex machina. Por exemplo, um técnico que foi chamado para consertar a máquina de lavar: uma pessoa pode escolher recebê-lo com cortesia ou exigir que ele faça logo o serviço e saia o mais rápido possível. Se o sujeito for profissional, ele fará o serviço pelo qual foi pago indiferentemente.

Por meio da imobiliária da qual eu alugava minha casa eu conheci um pedreiro, o Vadinho. Sujeito muito competente, bem disposto, inteligente, caprichoso, virulentamente honesto. Por meiod a imobiliária, ele veio ao socorro em casos de urgência. Estabelecemos um relacionamento mutuamente generoso, a ponto dele vir me socorrer outras vezes, mesmo que eu não pudesse pagá-lo pelo serviço, e em contrapartida eu oferecia sobressalentes, como botijão vazio, um vaso sanitário melhor do que os que eu tinha instalado, qualquer coisa que eu tivesse e ele precisasse, e ele se colocou à minha disposição, mesmo morando agora do outro lado da cidade. Por outro lado, a imobiliária o tratou como um empregado, não valorizou sua experiência e não quis atender às suas orientações sobre outras obras nos seus imóveis. Entre eles, a menor falha na questão financeira fez com que ele recusasse serviço deles, e eles perdessem um ótimo pedreiro. Mas em algum momento ele pode ser necessário novamente, e talvez ele escolha não atender a esse novo chamado. Minha esposa me repreendeu por ter sido cortêz com o corretor da mesma imobiliária, apesar dele ter nos faltado com várias coisas ao longo dos anos. Mas se eu precisar alugar novamente naquela região, talvez eu precise recorrer a ele novamente, e achei por bem manter aquela porta aberta. Da mesma forma evito de cortar relações com as pessoas mais diferentes de mim, porque em algum momento eu precisarei de algum conselho, alguma recomendação, alguma informação, ou algum serviço que eles, dependendo da sua boa vontade comigo, poderão ou não atender. Por isso procuro ser gentil até com os crackudos da minha rua.

As relações interpessoais influenciam a qualidade de vida. E a qualidade de vida de cada um influencia o seu estado de espírito, seu humor, e, consequentemente, sua boa disposição para se relacionar com outras pessoas. A minha qualidade de vida depende da qualidade de vida das pessoas com quem eu preciso lidar diariamente. Não é obrigação minha ou de qualquer outra pessoa se preocupar com a qualidade de vida de outrem. É uma escolha, e como toda escolha feita conscientemente, é, isso sim, obrigação nossa aceitar as consequências dela. Você pode muito bem ser rude com o garçom do restaurante. Mas pense que ele vai lhe servir novamente depois.

Por isso é sensato fazê-lo. E por isso eu me sinto compelido a buscar fisicamente, intelectualmente ou ideologicamente maneiras de melhorar a vida das outras pessoas. Eu já disse anteriormente que sou um misantropo - na ocasião, um misantropo que se arriscava em causas sociais - e não tenho qualquer aspiração de obter reconhecimento. Faço o que faço e ajo como ajo egoisticamente, porque preciso das outras pessoas para fazerem coisas por mim que eu não posso ou não quero, enquanto ofereço a elas o que eu sei e o que sou capaz de fazer. É assim que a vida em sociedade funciona. E preciso que elas estejam de bem com a vida. Preciso entrar num ônibus cheio e encontrar as pessoas de bom humor, e não hostis a ponto de atacarem-se umas às outras porque aquilo é a gota d'água para elas. Preciso que elas estejam dispostas a colaborar umas com as outras e estabelecer relações construtivas, e não agredirem-se ao menor descontentamento. Quem enxerga isso e opta pela solidariedade enfrentará os revezes mais crueis: alguns tentarão se aproveitar de você, tentarão intimidar você, tentarão pará-lo a todo custo.

Mas vale a pena. Porque toda pessoa importa.
 
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