quarta-feira, 26 de março de 2014

Purple Day - o dia internacional de consciência da epilepsia

Hoje foi um dia aborrecido. Eu me mudei (matéria para futuro post, "como é viver onde as outras pessoas normais vivem"), vim para a civilização, mas aparentemente o apartamento tem alguns problemas estruturais que eu tenho que resolver, e isso me toma tempo, e me obriga a escolher entre resolvê-los e trabalhar. Por isso, não resolvê-los é muito frustrante.

Aí me deparei com um post de um contato meu do Faceburguer nos EUA, divulgando o Purple Day, celebrado todo dia 26 de março para difundir o conhecimento sobre a epilepsia. Como eu nunca usei meu blog - nem o presente, nem os passados - para falar sobre isso, achei que seria adequado, e uma forma de fazer a minha parte neste dia, falar sobre epilepsia.

-Epilepsia-

Epilepsia é o nome para um amplo espectro de doenças, que se caracterizam por convulsões frequentes. Uma convulsão isolada não caracteriza epilepsia - um trauma na cabeça pode desencadear uma convulsão. As próprias convulsões, dependendo da parte afetada do cérebro, podem se apresentar de maneiras distintas de acordo com a síndrome apresentada por cada paciente, mas são geralmente movimentos involuntários de uma parte ou todo o corpo, podendo haver perda de consciência, mas pode se manifestar como ausências (episódios em que o paciente parece "desligar" por alguns segundos e deixa de responder a estímulos) ou distúrbios sensoriais (na forma de alucinações visuais, auditivas ou olfativas). A epilepsia e as doenças associadas não são contagiosas, então o paciente não precisa ser isolado durante o tratamento. Tampouco a epilepsia é sinal de loucura, intervenção divina ou demoníaca (motivo pelo qual epilépticos tiveram vida dura até fins do século XX). São doenças que tem tratamento se diagnosticadas corretamente por um neurologista.

-Meu caso-

Eu sou epiléptico. Comecei a ter convulsões localizadas na face seguidas de paralisia facial e lingual depois dos 5 anos de idade. A causa era uma inflamação no lado esquerdo do cérebro de origem genética, possivelmente caracterizando a Epilepsia Rolândica, ou Epilepsia Benigna com Pontas Centro-Temporais, pois é como ela se apresenta nos encefalogramas.

O meu tipo de epilepsia é o mais comum, e atinge crianças entre 5 e 15 anos, um pouco mais, um pouco menos. Depois de um tempo, ela deixa de se manifestar naturalmente. Mas como ela está impressa no código genético, pode ser transmitida para a geração seguinte. Os casos são muito numerosos e os sintomas variam bastante. No meu caso, incluía, nessa ordem:

-Alterações sensoriais, como zumbido no ouvido e desorientação;
-Perda de controle dos músculos faciais e da fala;
-Forte contração dos músculos faciais (a boca abria como num longo bocejo, mas com espasmos locais);
-Hipersalivação;
-Dificuldade de controle da respiração;
-Perda do controle motor mais fino nas mãos;
-A crise durava talvez cerca de um minuto. Durante a recuperação, os sentidos voltam ao normal rapidamente. É possível andar e gesticular normalmente imediatamente;
-A recuperação dos movimentos da face, da língua, e a capacidade de articular a fala demorava alguns minutos, talvez meia hora;
-As crises aconteciam geralmente à tarde ou à noite (como eu estudava de manhã, apenas uma ou duas vezes tive crises na escola);
-Eu ficava consciente durante todo o processo. É provável que acontecesse durante o sono. É impossível dizer, porque se acontecesse no meio da noite eu acordaria de manhã sem sequelas.

Nos eletroencefalogramas, eu apresentava regiões com picos muito densos ocorrendo de maneira irregular. Uma vez tive uma convulsão enquanto esperava para entrar na sala do exame, o que deve ter tornado o diagnóstico bem claro daquela vez :P

Este tipo de epilepsia é benigno, ou seja, não causa sequelas nem comorbidades, e normalmente não está associada a outras patologias. Os pacientes tem um desenvolvimento motor e mental sem diferenças notáveis para pessoas sem essa condição. Eu mesmo consegui manter um bom nível de aprendizado na escola, pratiquei esportes, joguei muito video game (mais do que pratiquei esportes) e levei uma infância relativamente normal. Mas para controlar as convulsões e manter o paciente confortável numa fase tão delicada da vida, é preciso o uso de medicamentos anticonvulsivos. No meu tempo de criança, os médicos ainda cogitavam a lobotomia como forma de "curar" a doença, e os remédios que eu tomava me deixavam aéreo e sonolento. O remédio ao qual me adaptei melhor se chamava Epelim, uma cápsula vermelha e branca tomada duas vezes ao dia. O conhecimento das diferentes epilepsias aumentou muito. Sabe aquela coisa que as avós dizem, que "antes ninguém tinha doença, hoje todo mundo tem alguma coisa"? Isso ajuda no diagnóstico e tratamento mais adequado para cada caso. O acompanhamento psicológico também é fundamental, porque a depressão bate à porta o tempo inteiro (olhando retrospectivamente, eu associo minhas dificuldades de relacionamento interpessoal ao meu medo de alguém me ver ou descobrir que era epiléptico, mas de tudo que eu lembro, a única lembrança que eu não tenho é justamente como eu processava emocionalmente a minha condição).

Quando cheguei aos 13 anos, as crises já não ocorriam fazia meses, mesmo eu deixando de tomar remédio um dia ou outro, e os exames apareciam normais. Fui à neuropediatra que me acompanhou desde o início apresentar os últimos resultados, e ela me disse que eu tinha 70% de chances de nunca mais ter uma convulsão, desde que eu cuidasse da minha saúde e tomasse algumas precauções - evitar bebidas e drogas principalmente - e disse que, se eu concordasse, ela poderia me dar alta. Lembro que naquele dia específico minha mãe não pôde me acompanhar, então foi a primeira decisão importante que eu tomei por conta própria. E dali em diante, isso deixou de ser uma preocupação para mim.

A Epilepsia Rolândica é a forma mais comum e mais branda de epilepsia. Há outros tipos, com diversas origens - genéticas, lesões no cérebro, doenças infecciosas, problemas metabólicos, traumas, tumores, má formação do encéfalo - com sintomas e efeitos diversos, como espasmos no corpo inteiro ou específicos em determinadas regiões, ausências, distúrbios sensoriais, com prognósticos que variam desde uma vida normal e saudável até sérias limitações cognitivas e motoras, e morte.

-Síndrome de West-

Eu gostaria também de falar sobre um outro caso diferente do meu, por causa da sutileza com que ele pode se apresentar, e do extremo cuidado que se deve ter para identifica-lo o mais cedo possível e iniciar tão logo o tratamento para atenuar suas sequelas.

Meu sobrinho, aos 3 meses, começou a sofrer episódios de contração súbita dos braços e pernas. Como um bebê, ele ficava deitado de braços e pernas abertas, e de repente os levava para frente, como se tentasse um abraço. Às vezes pode ser vista contração dos músculos do tórax e abdômem, revirar de olhos, e movimentos para trás com a cabeça. O bebê não chora e não produz som durante ou depois da crise, e tudo dura poucos segundos. É algo difícil de se identificar para quem não estiver muito atento. Esses movimentos são involuntários e pode ocorrer várias vezes ao dia. São os chamados Espasmos Infantis, o tipo de convulsão característica da Síndrome de West.

A Síndrome de West é uma comorbidade associada a outras doenças ou má formações neurológicas. É rara, e mais ou menos 90% dos pacientes apresentam graves lesões cerebrais pré-natais ou desenvolvidas por predisposição genética nos primeiros meses de vida, como a formação de tumores, microencefalia, atrofia cerebral, paralisia cerebral, não formação de corpo caloso (a estrutura que une os dois hemisférios cerebrais). Ou pode ser críptica, apresentando-se na forma de espasmos clônicos sem uma causa determinável. Por causa das lesões às quais está associada, a Síndrome de West tem um prognóstico muito pessimista: se a comorbidade não for letal, ela será extremamente incapacitante, levando a um baixo desenvolvimento intelectual, cognitivo e motor. Existem remédios que ajudam a controlar as convulsões e tratamentos (fisioterapia, fonoaudiologia, terapia ocupacional, etc.) para atenuar as sequelas psicomotoras, mas não há cura.

O caso do meu sobrinho foi investigado bem cedo. Um ponto nos deixou otimistas: nos eletros, ele não apresentava o quadro típico de West causado por lesões cerebrais, que são linhas em forma de ondas em contraste com os picos de um cérebro com atividade normal (quadro conhecido como hipsarritmia). Tratava-se então de uma Síndrome de West de origem críptica - ou seja, não causada por lesões cerebrais, mas com alguma outra causa sistêmica. Então minha irmã passou a dar atenção à alimentação dele e dela para tentar identificar alguma causa metabólica, enquanto ele tomava remédios fortes que o deixavam quase inerte. Ela tateou no escuro com os médicos até que foi detectado um cisto no cérebro dele, aparentemente benigno, mas que pode ter desencadeado o quadro.

Depois de alguns meses, ele parou de sofrer convulsões, o que também foi animador, pois na Síndrome de West não existe previsão para o fim das crises. No entanto, houve algum atraso no desenvolvimento motor. Com 1 ano e 4 meses, ele não consegue ficar em pé sem apoio, e caminha com ajuda de órteses nos tornozelos e um andador. Ele não tem firmeza nos tornozelos e não tem força necessária nos quadris para andar sozinho. Faz fisioterapia (que o ajudou a coordenar os movimentos dos braços, que também estavam prejudicados no início), psicomotricidade, e musicoterapia, além de frequentar uma escolinha onde ele é estimulado a interagir com outras crianças. Felizmente, por Deus, essa é toda a sequela que ele teve, dado o quadro arrasador que a Síndrome de West tipicamente produz. Ele tem o desenvolvimento cognitivo e intelectual aparentemente normais, é muito ativo, demonstra emoções, interage com as pessoas e as convida para brincar, é carinhoso com a cachorra da casa (e vice versa).

-Para saber mais (não esqueçam de checar as referências no final das páginas, para maior aprofundamento)-

-Epilepsia (Wikipédia inglesa)
-Lista de síndromes epilépticas (Wikipédia inglesa)
-Purple Day - iniciativa para a divulgação do conhecimento sobre epilepsia. Você pode participar ativamente
-Manual (em inglês) para o conhecimento, diagnóstico e tratamento dos diversos tipos de epilepsia
-Epilepsia.pt, site porutugês sobre epilepsia
-Artigo do Dr. Drauzio Varella sobre epilepsia, um tanto superficial, mas as recomendações são extremamente úteis
-Associação Brasileira de Epilepsia

quinta-feira, 6 de março de 2014

Somos um Rio de lixo

A greve dos garis do Rio em pleno carnaval é uma oportunidade de ouro para todos nós aprendermos algumas lições muito importantes, uma sobre responsabilidade social, e outras duas sobre relações de classe aqui na nossa cidade:

1- Quando somos crianças, mamãe e papai fazem tudo por nós até termos idade e discernimento para assumir essas responsabilidades. Enquanto crescemos, somos lentamente abraçados pelo Estado, que nos oferece serviços em troca de impostos. Mas, sem medo de errar com uma generalização, a grande maioria aceita os serviços oferecidos em troca da sua responsabilidade pessoal pelos impactos que ela causa no lugar onde ela vive. Porque é diferente a maneira como uma pessoa que depende de um poço artesiano lidar com a questão da água (inclusive com a questão da limpeza da água) e a maneira que alguém que sempre teve serviço de água encanada em casa. O primeiro dificilmente será visto lavando a calçada com a mangueira porque entende que o seu suprimento de água é limitado - como também é o do que tem água encanada, mas ele nunca sente, até que começa a faltar água no sistema, quando então ele responsabiliza a empresa. A mesma coisa acontece com a maneira como lidamos com lixo. Tem uma empresa lá que recolhe o lixo, então o máximo que a maioria se dá ao trabalho de fazer é juntar tudo em sacos e deixar na porta de casa. Tem garis varrendo a rua, então pra que se preocupar com um papelzinho amassado? Mas não há nada que nos impeça de produzir mais lixo do que o necessário, de desperdiçar comida, de jogar fora material próprio para adubo orgânico, de usar objetos descartáveis em detrimento de itens reutilizáveis equivalentes (que precisam ser lavados ou sofrer qualquer tipo de manutenção), de não se importar em separar materiais recicláveis para serem entregues nos locais adequados. Enfim, junta-se tudo num saco que será esmagado por um caminhão e desaparecerá de vista, junto com o problema. Vi num artigo que, em Fortaleza, em 12/2012, cada pessoa produziu em média quase 2 kg de lixo por dia (não contando seus excrementos). Eu sei que eu produzo menos de 1 kg nos três dias entre as coletas de sexta e segunda feiras, e que há outros como eu, então se essa é a média, a coisa é muito grave. A questão do lixo não é só uma questão de limpeza, porque todo esse lixo precisou ser produzido um dia, e consumiu recursos naturais não renováveis e energia para isso, e está sendo devolvido à natureza na forma de detritos que não se decompõe e em contaminantes da água e da atmosfera. E tudo isso porque perdemos (ou nunca tivemos!) o nosso senso de responsabilidade pelo que consumimos e pelo que é feito com o que deixamos para trás. É menos uma questão de instrução formal, porque os mais ricos e com mais formação produzem mais lixo, mas mais uma questão de educação, no sentido de formar pessoas que sabem que estão integradas a uma sociedade, e que tudo que elas fazem produz reflexos que afetam as suas próprias vidas, inclusive essa necessidade voraz de consumir o que não é necessário, porque é isso que significa bem estar e progresso.

Para não dizer que estou mergulhando no comunismo utópico, vou dar o exemplo da Tóquio capitalista para mostrar que, embora esta sociedade seja terrivelmente consumista, a questão do lixo urbano e da noção do impacto pessoal de cada um no meio ambiente pode afetar positivamente a qualidade de vida para todos. E é necessário que isso aconteça aqui também.

2- Muitas pessoas devem estar se dando conta pela primeira vez da importância do profissional de limpeza urbana para o bem estar social. Muitas pessoas, especificamente dos bairros mais ricos e estruturados, onde o serviço de coleta de lixo é habitual, porque nas favelas que o Estado abandonou (e onde, ironicamente, a maioria dos garis é forçada a morar, dado o seu salário), isso é sentido há muito tempo. Esse profissional é tão importante quanto o policial, o tabelião, o legislador e o juiz, porque a ausência qualquer um deles impossibilita o funcionamento de toda a sociedade no sistema em que vivemos. Mas quando você deu bom dia para o gari que estava varrendo a rua na sua frente e o tratou por "senhor" ou "senhora", ou quando você viu uma prefeitura pagando ao gari o equivalente a outros profissionais da área administrativa com a mesma escolaridade e sob a mesma carga horária? Não raro, o gari é uma figura desumanizada, numa função indigna e degradante, associado inconscientemente à sujeira (que você produziu e ele está limpando), precisamente como tratamos os catadores de material reciclável, que são vistos como mendigos puxando carroças - um primo meu, que se envolveu em projetos com catadores, que o diga. É uma oportunidade para avaliarmos o grau de distorção da nossa percepção desses pessoas em níveis pessoais, profissionais, e do seu papel na sociedade. E de mudar isso.

3- Parecido com o item anterior, mas um pouco mais grave que eu prefiro não generalizar, porque quero acreditar que isso não é tão difundido - mas que a prefeitura deixou transparecer de forma que foi a primeira coisa que me revoltou nesse episódio todo e me fez tomar posição em favor dos garis: a percepção da função social do gari, como alguém que está na obrigação de recolher tudo que você joga fora. "Obrigação", não porque este é o trabalho para o qual eles se dispuseram a fazer, mas porque é seu direito jogar o lixo que quiser e onde der na telha. Afinal, você paga impostos, e paga também o salário do gari (como se ele não os pagasse também). A prefeitura atual parece entender dessa forma. Ao paralisar os trabalho, primeiro garis em passeata foram recebidos pelas forças policiais como habituais perturbadores da ordem - com balas de borracha e gás lacrimogênio. Depois, quando sua greve foi considerada ilegal pela justiça, 300 garis grevistas, sobretudo os responsáveis pela limpeza das regiões da cidade com maior atividade durante o carnaval, foram avisados a comparecer à sede da empresa para tratar da sua demissão - decisão revogada ontem. E os que estão na ativa estão escoltados por agentes e veículos da Guarda Municipal, que se certifica de que eles realizarão o trabalho que lhes for determinado. Os garis pleiteiam, entre outras, reparações de perdas salariais das duas últimas gestões municipais, reajuste no vale refeição, e um plano de saúde confiável que tenha uma rede que atenda a cidade como um todo e tenha como atendê-los no que for necessário. Você pode imaginar a pessoa que limpa as coisas de que você tem nojo sem plano de saúde? E, mais uma vez, ao invés de atender a reivindicações, o Estado escolhe se colocar como antagonista da classe, como se a cada greve fracassada ou manifestação debelada ele ganhasse um troféu. E, ao invés disso, descarta os profissionais que estão dentro do seu direito legítimo de reivindicação, e os demais são obrigados a trabalhar sob a vigilância de capatazes. Isso expõe uma relação de poder que era mais comum de se ver antes de 1888.

Mas ainda bem que esta greve aconteceu, e aconteceu no momento e local em que causa maior transtorno para a cidade. Para olharmos as montanhas de lixo, que é nosso, e entender que fomos nós que fizemos isso.
 
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