quarta-feira, 9 de abril de 2014

Vindo para a "Cidade Grande" (sem sair da cidade)

A vida na civilização...

Eu nasci em Ipanema, na rabeira da rua Alberto de Campos, entrada do Morro do Cantagalo, e morei lá até os 5 anos e meio. Como eu só podia andar sozinho até a banca de jornal da esquina (meu primeiro "emprego"!), esse período não conta.

De lá, fomos para a Barra da Tijuca, num tempo em que se olhava ao longe e só se via dunas de areia branca, e o mar ao longe. Era, na época, a parte mais afastada da Barra; os shoppings, restaurantes, postos de gasolina, supermercados e centros comerciais que começavam a pipocar, estavam todos distantes demais para se ir a pé (o que, aliás, é o meio de transporte menos prático para a Barra, quem já se viu tendo que andar para ir de um lugar a outro por lá sabe bem disso). A padaria mais próxima (onde tb funcionava a locadora de filmes e games mais próxima) ficava a 15 minutos de casa. Em suma, só quando tinha um carro e alguém disposto a dirigí-lo era possível fazer as coisas do dia a dia - e já que estávamos de carro, não necessariamente essas tarefas eram realizadas na Barra.

Há 9 anos mudamos para a Ilha de Guaratiba, bairro relativamente isolado e desconhecido do resto da cidade, na zona rural do município. Sim, zona rural, na verdade, repartido entre o Parque Estadual da Pedra Branca e a Reserva Ambiental Rural de Guaratiba, com fazendas de gado, plantações de frutas, legumes, e plantas ornamentais, haras, sítios para festas, etc. Deve ser a utopia de qualquer neoliberal, porque ali o Estado é algo quase totalmente ausente - a urbanização se restringe a uma linha de postes de luz ao longo de uma estrada pavimentada há décadas, e os pontos de ônibus que continuam de pé foram erguidos no governo Chagas Freitas, quando governador do Estado da Guanabara! No início eu morava com meus pais numa casa grande e confortável, mas na área mais carente do bairro, onde vc olha para um lado da estrada, olha para o outro, e não vê sinal de atividade humana. Depois eu me mudei para outra casa menor, mais perto do "centro" do bairro, onde o "hot spot" era um mercado que vendia coisas de marcas bizarras que pareciam terem sido jogadas fora por outro mercado e vendidas a preço de Pão de Açúcar, basicamente pq era o único mercado dali. Quando me mudei, a Ilha contava com duas linhas de ônibus, mas a principal delas, que ligava o bairro à Barra - e permitia, com uma baldeação, chegar à Zona Sul e ao Centro, onde estão os empregos na cidade - deixou de circular quando foi inaugurado o BRT Transoeste. Hoje, o morador da Ilha que não tiver a sorte de morar perto de uma estação e/ou não puder se deslocar a pé, é obrigado a pegar o último ônibus que ainda resta só para sair do bairro e se virar para chegar a qualquer outro lugar. O meu itinerário de casa para o trabalho exigia 3 ônibus. Sendo o bairro carente de serviços - comprar um jornal exigia quase 40 minutos de caminhada - era muito difícil fazer qualquer coisa perto de casa, e muito difícil, por conta do transporte e do cansaço acumulado durante a semana pelas enormes distâncias percorridas, fazer qualquer coisa longe dela. Uma vida bastante reclusa. Sobreviver num lugar como a Ilha, onde não há emprego, serviços, onde até quem trabalha especificamente com entregas em domicílio não sabe se localizar, e onde qualquer coisa precisa ser feita a pelo menos dois ônibus de distância exige altos malabarismos e adaptações específicas, que, quando dominadas, induzem as pessoas da região a quererem permanecer ali e manter aquele estilo de vida precário, mas com o qual elas sabem lidar.

Enfim, findo o contrato de aluguel na Ilha, encontrei um apartamento no bairro de Lins de Vasconcelos, no Grande Méier, Zona Norte da cidade. É possível que quem não seja do Rio tenha ouvido esse nome, ou sobre as favelas do entorno, que a secretaria de segurança convencionou de chamar de "Complexo do Lins" em sua até agora fracassada tentativa de "pacificar" as comunidades. Eu não vou me deter muito a descrever o bairro nem o estilo de vida, mas para se ter uma ideia do quão roceiro eu me tornei morando em Guaratiba, vejam só as diferenças que eu tenho notado no estilo de vida e tem me deixado maravilhado (a despeito de problemas estruturais no meu prédio, que têm me aborrecido). Talvez algumas dessas coisas pareçam naturais a outras pessoas habituadas à vida urbana, mas talvez reparar nelas os faça valorizá-las um pouco mais:

- É possível ir a qualquer lugar da cidade (inclusive para a Ilha de Guaratiba) usando transporte público em menos de duas horas;
- Mesmo em se tratando de um bairro essencialmente residencial, apenas com pequenos comércios, é possível ir de lá até o grande centro comercial da região (a rua Dias da Cruz, no Méier) em 10 minutos a pé;
- É possível fazer compras num mercado limpo que não lhe venda legumes podres por preços malucos;
- É possível escolher esse mercado;
- É possível escolher entre ir a esses mercados ou a quaisquer lojas que vc queira que vendam os mesmos produtos - Casa & Video, Americanas, Casa do Biscoito, Mega Lar, etc.;
- É possível ir a um médico ou a um laboratório fazer exames sem precisar pegar duas conduções. Ou qualquer uma;
- A pé ainda é possível ir a uma loja da Light e outra da CEG;
- Existe gás encanado;
- Existe água encanada;
- A luz não acaba toda semana, nem nos dias mais quentes, nem nos mais chuvosos;
- As empresas que fazem entregas sabem localizar o meu endereço;
- Os taxistas sabem localizar o meu endereço;
- O carteiro sabe localizar o meu endereço;
- As pessoas que moram na minha rua sabem localizar o meu endereço;
- A viagem para o trabalho exige apenas dois ônibus, e dura cerca de 1:30, cerca de metade do que eu gastava antes em cada viagem...;
- ... e existe mais de uma rota possível e viável de casa para o trabalho;
- Tem mais de uma linha de ônibus passando pelo bairro, e eles passam em intervalos de, no máximo, 10 minutos um do outro;
- Existem lanchonetes pequenas, lanchonetes de grandes franquias, e restaurantes, e esses restaurantes não colocam preços para turistas estrangeiros no cardápio;
- Vc pode pedir pizza por telefone, e essa pizza chega em meia hora no máximo;
- Na esquina tem um hortifruti, uma padaria, uma farmácia, e uma viatura da PM;
- Todas as ruas são asfaltadas e possuem calçadas;
- Existem faculdades, cursos, e locais com atividades culturais, até de graça;
- Repito, calçadas!

Minha única reclamação é que as pessoas não dizem bom dia, obrigado, desculpe, boa noite e por favor. Exceto as meninas que trabalham na Rainha do Méier (uma padaria) e as duas bichinhas crackudas que passam as noites num beco perto de casa.

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