quinta-feira, 6 de agosto de 2015

Preconceito: o meu e o seu

Dentre as muitas causas possíveis, estive pensando como o preconceito (dos mais graves e violentos até os mais banais) tem uma raiz fincada na falta de empatia pelo outro. E aí eu me deparei com um nó lógico, porque eu não consigo distinguir o que é a causa ou a consequência: a falta de empatia, e o fechamento da visão de mundo em si mesmo, ou seja, quando uma pessoa toma a si mesma como medida de todas as coisas.

Vou pegar um exemplo, que foi o que deu ignição neste pensamento ontem, enquanto estava no ônibus, preso no trânsito, e já peço desculpas adiantadas a todo mundo (e é muita gente, acho que a maioria dos meus amigos está entre eles) que está no alvo do meu preconceito:

Tatuagens.

Luto contra um preconceito meu contra tatuagens. E embora eu não possa esperar que me perdoem por ele, ao menos eu localizei a sua causa. A causa está em mim mesmo.

Preconceito é uma reação irrefletida a uma situação que não se encaixa em um padrão óbvio. Falo de padrões porque eles são mais ou menos construídos inconscientemente na nossa mente, porque nenhum preconceito resiste à razão. É imprescindível, para que haja preconceito, que a razão esteja momentaneamente suprimida. Uso como exemplo aqui um truque que qualquer um pode fazer em casa. Vá para o banheiro e, à meia luz, olhe-se nos olhos fixamente através do espelho por uns 5 minutos. O que é uma imagem processada conscientemente no início (você, a parede atrás de você, a toalha pendurada ao lado, o vaso quase fora do campo de visão no canto abaixo, etc.) aos poucos parece obscurecer enquanto você mira seus olhos. O seu corpo e o seu rosto (assumindo que você continua fixo nos seus olhos) podem começar a parecer estranhos, enquanto tudo em volta começa a ficar obscurecido e confuso. Porque você forçou o seu cérebro a fixar a atenção em um detalhe, onde ele estabeleceu um padrão, e tudo em volta, à medida em que se afasta do foco de atenção, fica cada vez mais confuso, porque o cérebro "se esqueceu" de processar aqueles padrões, que continuam lá, e os substituiu por imagens do inconsciente ou o que quer que estivesse na fila para se expressar ali e "preencher" esse vazio cognitivo. Descrever o mundo sob a ótica do preconceito é como descrever as assombrações que apareceram no espelho durante a experiência.

Antes de voltar às tatuagens, vou contextualizar um pouco. Durante a infância e a juventude nunca passei necessidades. Meu pai tinha um emprego que pagava bem e nossa família teve algum conforto. Até meus vinte e poucos anos eu tinha esse backup financeiro em casa que fez com que eu não me preocupasse em trabalhar e conquistar meu próprio dinheiro. Eu nunca fui consumista, e, de fato, mesmo vivendo com essa tranquilidade, foi n começo da faculdade que eu comecei o hábito de economizar o almoço para guardar dinheiro para outras coisas. Eu poderia simplesmente pedir para o meu pai, mas eu sentia que não era correto. Mesmo ainda vivendo sob o mesmo teto, quando comecei a ganhar meu próprio dinheiro eu nunca mais pedi nem aceitei dinheiro dele. Minhas viagens, meu lazer, minha comida, meu transporte, meu plano de saúde, e a conta de uma das linhas de telefone de casa (a que a gente usava para internet), eu que pagava. Quando eu tinha mais do que precisava, ia para uma poupança, porque sempre tem uma emergência de última hora que exige um capital disponível (e teve!). Quando eu não tinha, eu não fazia nada disso (e, eventualmente, me desfiz do plano de saúde e do telefone, e a tal poupança veio muito bem a calhar durante a penosa fase em que todos estavam desempregados). Minhas responsabilidade com dinheiro veio espontaneamente e aos poucos, mas a minha real noção de administração de dinheiro de casa veio de uma vez quando me mudei com minha então namorada, resolvendo esse processo em apenas duas semanas, e absolutamente tudo que eu fazia para mim, para nós, e para a casa precisava caber dentro do que eu ganhava na época. Com o meu histórico de poupador (novamente a minha poupança reconstruída nos dois anos anteriores foi extremamente providencial, porque os custos todos para alugar e equipar a casa e arcar com outros custos drenaram-na completamente no primeiro momento) isso acabou não sendo um problema, e, novamente, quando o dinheiro encurtava, eu cortava onde podia.

Administrando uma renda compatível com a classe média *média* eu consigo prover a mim e minha esposa de algum conforto, mesmo que, de vez em quando, eu precise cortar alguma coisa para chegar ao final do mês com dinheiro (desde o começo do ano até receber um aumento no mês passado, eu passava metade do mês evitando de almoçar para não gastar com comida, como eu fizera no passado, porque eu sabia que era um corte no orçamento que eu, pessoalmente, podia tolerar). É tudo apertado, para que não falte nada, o que me tira a possibilidade de gastar com extravagâncias e coisas sem utilidade prática. Some-se a isso ainda que ninguém na minha casa tem tatuagens ou já considerou fazê-las, de modo que isso também entrou no meu padrão mental.

Então, quando eu vejo um cabra com um braço inteiro tatuado, imediatamente me vem na cabeça: ele vive da grana do pai (especialmente quando ele é jovem demais para construir alguma coisa sozinho), porque ninguém que viva do próprio trabalho e tenha R$ 1500,00 pra encher um braço de desenhos bota comida na mesa. Não é sempre que isso acontece, mas eu preciso me esforçar para bloquear esse pensamento

Eu sei que é horrível isso. E eu encontrei o motivo de pensar assim.

EU ESTOU ME USANDO COMO MEDIDA.

Porque eu nunca tive como dispor de R$ 1500,00 na vida para qualquer coisa que não fosse comer e morar, eu penso automaticamente, atendendo aos meus padrões mentais, que se alguém dispõe desta quantia para algo meramente estético é porque não passa necessidade, ou não é responsável pelo sustento de ninguém. Eu penso nessa quantia em termos de "compras do mês", "passagens de ônibus", "latas de massa branca", nunca em algo que não seja vital para mim ou para a minha família. E se eu não paro, começo a associar a tatuagem com vaidade, surge uma sensação de desprezo e auto-exaltação, e começo a construir uma imagem da pessoa absolutamente minha.

O tempo inteiro eu procuro combater meus preconceitos praticando o desapego a mim mesmo, uma desconstrução do que eu tenho como certo e errado. Tirando os meus próprios padrões do caminho, construídos sob uma ótica absurdamente limitada das minhas próprias experiências, eu me torno mais capaz de exercitar a empatia, e a compaixão, de "calçar os sapatos do outro", de compreender que é perfeitamente possível que eu esteja completamente errado (meu exercício começa com a pergunta "e se eu estiver errado?"), e não cair na armadilha do julgamento. Embora o caminho até a compaixão universal seja longo e eu ainda não consiga ver o seu final, essa prática alivia a minha mente quando isso evita que eu fique matutando sobre a vida dos outros sem conhecimento.

Entender de onde vem o preconceito não pode servir como justificativa para você continuar praticando-o, como se isso fizesse parte de você. Seu pâncreas faz parte de você. Você é o que você constrói. E parte dessa construção é a desconstrução do que não é bom. Não significa tampouco que você deva aderir ao que quer que seja (por exemplo, que eu deva ir a um tatuador agora mesmo). Apenas que você reconhece que as pessoas podem ter muitos bons motivos, circunstâncias e contextos para fazer o que você normalmente não faria, e que você, por outro lado, também tem suas atitudes reprováveis que, para você, fazem todo sentido. O resto é cinismo.

3 comentários:

Sara disse...

Pois é... Se policiar pra não julgar o outro é um primeiro grande passo! Todos temos algumas arestas de preconceito para aparar... Faz parte do nosso crescimento e aprendizado neste mundo.

Se o camarada tatuadão é um baita playboyzinho ou um trabalhador digno que juntou dinheiro por meses pra fazer algo que lhe dá alegria (poderia ser uma viagem ou festas ou compras _ fúteis ou não_ ,etc)... Se tatuou simplesmente pra aparecer ou por mera modinha ou ainda por apreciar a tattoo como uma verdadeira arte corporal que pode expressar momentos inesquecíveis e marcantes da sua vida ou das suas ideias, enfim... ... ...
Isso não vem ao caso, pois não nos cabe julgar! ;) Cada um com seu cada um, e deixa o cada um dos outros! rsrs

Monocromático disse...

Exatamente!

natália disse...

Achei interessante o seu ponto de vista, e ele faz todo o sentido. Mas isso vale também para várias outras coisas: quando eu vejo pessoas jovens extremamente bem arrumadas, com roupas de marca, gastando dinheiro com bebidas, festas, cosméticos, etc, sempre penso nisso. Mas a verdade é que: se a pessoa tem dinheiro, não tem problema ela gastar - se o dinheiro é do pai, é o pai quem controla, e se ele dá para o filho, isso é uma escolha dele. Se a pessoa não tem dinheiro, ainda assim, não tem problema ela gastar - o que é importante pensar é: qual a minha prioridade? por que vou gastar um dinheiro que eu não tenho? E nós, do outro lado, podemos pensar assim: se eu tivesse dinheiro, também não gastaria com alguma futilidade?

Bjim!

 
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