segunda-feira, 3 de setembro de 2018

O fracasso civilizacional do Brasil

Postando após a destruição total do Museu Nacional, onde trabalhei, por muito tempo de graça, entre 1999 e 2011.

Eu, que fiquei em casa, mal consegui dormir pensando no nosso fracasso como civilização, um país que prefere abandonar os mais pobres à míngua ou à morte, um país que se agarra à uma tradição de violência no trato com o outro e ao direito de fazê-lo, que se diz patriota mas vê com bons olhos (ou com total impassividade permissiva) o sucateamento e entrega dos seus patrimônios mais valiosos - a "velharia" que atrapalha o crescimento das cidades, o "mato improdutivo" que barra o crescimento do agronegócio, dos serviços públicos básicos e estratégicos processados como "cabides de emprego" e os servidores como "privilegiados".

Este é o país que coloca fogo nos seus museus. Sim, porque nos últimos anos, o Museu Nacional já é a terceira instituição pública de relevo (que eu me lembre agora!) de ensino e/ou preservação de patrimônio e cultura a ser arruinado pelo fogo: em 2015 foi o Museu da Língua Portuguesa, e em 2016 o Instituto Butantã (que já sofrera outro incêndio em 2010). Acidentes acontecem, mas quando se tem verba para se fazer manutenção, reformas estruturais, para se pagar, treinar e manter uma brigada de incêndio a postos em todos os horários, acidentes se evitam ou são controlados. Quando se retira esta verba, assume-se o risco de colocar tudo abaixo.

Nos últimos anos culpou-se a "crise" pelos cortes em todos os setores do serviço público, sobretudo através da PEC 241, que congela os investimentos em ciência e educação por 20 anos. É apenas um projeto saído do Planalto para formalizar uma velha política de desmonte da educação pública e das instituições de pesquisa - o caminho que eu vejo para um Brasil com autonomia. Os cortes, além de atender a interesses privatistas (além de anular qualquer possibilidade de crescimento e desenvolvimento tecnológico proprios, que não passem por escritórios de patente ou grandes fornecedores de bens de valor agregado estrangeiros, temos conglomerados educacionais salivando pelas nossas universidades), servem principalmente para se pagar dívidas contraídas junto a bancos. Bancos que, contraintuitivamente, tem suas dívidas bilionárias com o mesmo governo perdoadas. Enfim, a PEC passou porque a sociedade, quando muito, ficou "triste", pq ela é boba e feia. Ou nem ligou. Ou achou ótima. A comunidade científica alertou desesperadamente para o desastre a ouvidos moucos.

Cada um desses foi conivente com a destruição do Museu Nacional. Aconteceu o que era o esperado, e haverá quem até mesmo o desejasse. "Para que gastar dinheiro pra colecionar bichinhos quando tem tanta miséria na África?". Quem nunca leu algo parecido (de alguém que, invariavelmente, tampouco se importa com quem morre de fome)?

Por isso, não muito diferente do "bárbaro" Estado Islâmico (escrevi isso antes da UNESCO emitir a nota comparando a tragédia do Museu Nacional à destruição das milenares ruínas de Palmira pelo IE), somos um país que ateia fogo aos seus museus. Temos ojeriza à nossa História e aversão ao verdadeiro progresso. Antes tivéssemos vergonha, porque motivo não nos falta (quando se apontam esses motivos, surgem vozes falando em "doutrinação esquerdista" ou a idiotice que for... a ojeriza).

O Museu Nacional representava não só um centro de pesquisa de ponta em ciências naturais, antropologia e arqueologia (e ainda será, porque as pessoas que o fazem assim continuarão trabalhando do jeito que der), mas tinha 200 anos de História nossa lá dentro. Era algo que nos unia e nos definia como nação, porque tudo que foi feito dentro dele, os estudos e as exposições, objetivavam o nosso crescimento e o bem comum. Era tão importante que eu senti como se o Brasil tivesse acabado ontem à noite. Como Constantinopla foi para o mundo romano, o último bastião de civilidade, onde se fazia a ponte entre o que fomos, o que somos, e trabalhava-se pelo que poderíamos ser.

Vamos jogar por terra quantos mais museus, universidades pudermos, até que as pessoas enxerguem que foram feitas de mão de obra barata ou reserva internacional de trabalho, que estão ficando pobres porque estão entregando o fruto do seu trabalho a algum Barão estrangeiro, que não tem o que comer porque a terra não produz mais (e a que produz está ocupada com commodities para exportação, já que o mercado interno não terá mais valor, e não alimento), que elas não sabem mais fazer nada sozinhas porque não tem mais quem as ensine. Quando nos dermos conta de que voltamos a ter uma indústria incipiente e pouco competitiva, uma economia frágil e dependente da especulação financeira, quando a fome tornar novamente impossível a vida no interior e tornar os abismos sociais no meio urbano tão maiores que a violência será incontrolável, e a infraestrutura de maneira geral, por pura incapacidade técnica, finalmente sucumbir. Alguém haverá de se dar conta de que queimamos o Museu Nacional.

Um comentário:

Chanchal Maitra disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
 
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