sexta-feira, 19 de novembro de 2010

Proselitismo religioso e cinema

Nosso país é regido por uma Constituição que nos garante a liberdade de culto. Ninguém é obrigado a ter uma fé religiosa ou se afiliar a qualquer instituição deste tipo, mas tem o direito de fazê-lo, desde que, claro, este direito não interfira em outros. Um exemplo é a restrição vigente aqui no Rio quanto à pregação religiosa nos trens urbanos, onde as pessoas não podem escolher se querem ou não participar dessa atividade - ou seja, fere-lhes o próprio direito ao culto, ou não.

Cheguei aqui abrindo o post dessa forma, pensando nos recentes filmes cujo tema central é o espiritismo. Tem um terceiro filme, desses de grande distribuição, em dois anos, sobre esse assunto. Não creio que produções cinematográficas firam de alguma forma direitos alheios, e acho até que se enquadram perfeitamente no que a Constituição Federal configura como liberdade ao culto. Diretores, atores, produtores podem expressar sua fé artisticamente da maneira que quiserem, e assiste quem achar que deve.

O que me deixa preocupado é que a produção cinematográfica, tão pobre no Brasil, esteja começando a ser reduzida a um veículo de pregação religiosa. Estava assistindo um debate com Cacá Diegues no Roda Viva da TV Cultura, onde ele ressaltava os grandes avanços técnicos que o cinema brasileiro tem alcançado, em parte graças aos progressos da dramaturgia televisiva, mas ressalvava como as produções ainda são caras demais para o pouco público que as procura, e como essa insegurança no retorno financeiro dos investidores dificulta a captação de verbas que não sejam oferecidas via Ministério da Cultura. Ele elogiava, inclusive, a criatividade dos diretores brasileiros e estrangeiros, de países com México e Argentina, que apresentam características semelhantes às nossas, em produzir algo de qualidade nessas condições.

No entanto, 3 produções centradas num tema religioso (uma biografia, uma baseada em obra psicografada, e agora um documentário) vieram à luz (sem trocadilho) num curto espaço de tempo. Isso mostra duas coisas: a avidez que o público tem por filmes que digam algo que lhes faça sentido, e o oportunismo de quem detem a grana, que prefere canalizar seus investimentos para uma fórmula que lhes assegurará o retorno.

O problema é que isso pode estar conduzindo o cinema brasileiro a um beco cultural sem saída: nosso cinema já é tão carente de uma personalidade e uma linguagem próprias (em parte, massacradas ainda no seu período formativo pelo regime militar, e aniquiladas de vez com o fim da Embrafilme, no governo Collor), e agora periga de perder até sua propriedade de expressão da nossa cultura e nossa realidade para se tornar um veículo de pregação religiosa, porque é isso que vende. Eu já posso antever grandes produções estreladas por atores conhecidos, patrocinadas pelos auto-proclamados apóstolos e bispos das igrejas neopentecostais, que não serão mais do que extensões dos seus programas de TV, com uma dramatização pouco mais elaborada. Acho espantoso que a Igreja Católica já não faça algo do tipo sistematicamente. Posso até contar as sandices da Xuxa e seus duendes nesse bolo.

Novamente, não acho ruim que se faça filmes com temas religiosos, para públicos específicos. Mas tenho medo que isso vicie a indústria do cinema, e acabe por anular este veículo tão importante de divulgação de cultura no Brasil. Será que, no momento em que filmes religiosos obliterarem o espaço para a produção de filmes laicos, eles estarão violando a liberdade de culto de quem gostaria de poder ir ao cinema para ver um filme mas não pode porque esse tipo de filme não é mais produzido por falta de interesse de financiadores, e não para adorar imagens em movimento?

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